Deus tem uma obra na sua vida. O inimigo está furioso. A vitória é nossa. Há poder em suas palavras. Quem não vem pelo amor vem pela dor. Vamos entrar na presença de Deus. Deus é pai, não é padrasto. Clichês. Frases (preguiçosamente) feitas (repetidas).
Funcionalidade. Praticidade. Repetição útil. O objeto-técnica aos poucos tornou-se metáfora de repetição burra, inconseqüente e desnecessária, que não acrescenta nada, verdadeira inutilidade idiomática, completo vício lingüístico.
Aliás, é exatamente isso: vício. Mecanismo que domina o usuário. Uma droga, o clichê. Autores de fato inteligentes trazem consigo profunda ojeriza dos tais lugares-comuns. "Era uma vez..." como abertura e "... foram felizes para sempre" de fechadura ficam bem em Andersen, mas duvido que Ruth Rocha faça dessa fórmula uma liturgia sine qua non para seus belíssimos contos infantis! Aquele famoso " obrigado, geeeeeeente!" do fim dos shows, seguido de "Por que parou, parou por quê?" são claramente elementos de um ritual simbólico dessa mágica interlocução artista/público. Clichê carece de intencionalidade, de voluntarismo e é inconsciente; não é uma palavra ou frase que usamos, mas que nos usa.
Pior que os clichês da literatura, da música (muito boa a saída de Marisa Monte ao subverter a norma culta e dizer "Beija eu, beija eu "em vez dos cansativos "Eu te amo", que não passam de muletas), da política (" É preciso debater o tema com a sociedade" , "Pesquisa não ganha eleição" ), da educação (" conhecer a realidade do aluno" ), do cinema americano ("vamos pedir comida chinesa, amor?", tiras que, às vésperas da aposentadoria, tecem uma missão impossível ou que passam horas vigiando suspeito empanturrando-se de café e donuts) são os da religião. Em especial do cristianismo evangélico tupiniquim.
Semanalmente essa praga lingüística irrompe nos púlpitos e se alastra pelos bancos. "Somos cabeça e não cauda", "Somos filhos do Rei", coisas desse natureza distraída ou adoecida de sentido. Alerta: não confunda citação bíblica com clichê. Seria o mesmo que criticar um autor por evocar Shakespeare ou Camões e tachá-lo de preguiçoso. É o uso desrespeitoso e apressado que se faz das Escrituras o problema. Quem ainda suporta aqueles micro-sermões entre os cânticos do "período de louvor" ? Quem acredita na necessidade, sentido e relevância de frases como "Deus quer tratar com sua vida hoje à noite. Você não sairá daqui do modo entrou (...)"? Isso para não nas letras esdrúxulas, algo constrangedor que nos vemos obrigados a cantar nos cultos por aí. Quando não é o caso de um lugar-comum, trata-se de um lugar-absurdo, como esse caso: "olhei pro céu/e vi que sempre foi azul/ Como é bom dizer/Jesus I love you". Preciso comentar?
A oração é um outro exemplo: observe o conteúdo das nossas orações. Será que conseguimos orar três minutos sem usar as muletas tais como "Amantíssimo Deus", "Mais uma vez entramos em sua presença", "entra com providência" , "vai tocando (SIC) cada coração" , "perdoa nossos pecados de omissão e comissão" e coisa do mesmo tipo e tristeza. Orações para fora - para os outros, e deveria ser para cima - para Deus.
Preguiça. Vã repetição. Reza gospel. Martin Luther King Jr me sacode de alento ao sugerir que "É melhor oração sem palavras do que palavras sem oração". Ana, orando-chorando, no templo. Ainda bem que Deus, o Senhor, o Pai nos aceita e entende em Jesus, O Verbo, o Filho e nos concede o auxílio do Espírito, que ora em nós de modo "inexprimível" (supra lingüístico).
A oração simples nos socorre: "ore como puder, não como quiser". As orações-relâmpago de Neemias, a fórmula do cego: "Jesus, Filho de David, tem misericórdia de mim, pecador", a completude e a adequação do Pai-nosso. Há o que dizer, há o que calar diante do Senhor. Quem deseja uma outra gramática deveria mergulhar na amplitude-tessitura-abrangência emocional e existencial dos Salmos, nossa "escola de oração" (Peterson), "anatomia da alma" (Calvino) .
Como seria aceitar a orientação de um às das palavras, como Fernando Sabino, que dizia "escrever é cortar"? Como seria levar a linguagem litúrgica, homilética e devocional (louvor, pregação e espiritualidade) tão a sério que as repetições de palavras e idéias fossem usadas com toda a parcimônia e lucidez do recurso formal da poesia, nunca "tipo assim, quer dizer, coisal e tal"?
Vejam os Clássicos: a lucidez dos argumentos de Paulo, a deslumbrante inventividade de Guimarães Rosa, a erudição nunca cansativa e ensimesmada em abstrações de C. S. Lewis, a exuberância dos argumentos brilhantes de Calvino, o cativante respeito e reverência de Eugene Peterson às palavras?
Aliás, Peterson me inspirou a escrever esse texto-provocação. Lendo seu maravilhoso livro autobiográfico The pastor, a memoir (no Kindle - acabou de sair nos EUA ) cativou-me o relato de sua juventude como estudante de teologia. Como eu, Eugene Peterson cresceu num ethos pentecostal devoto e íntegro, mas no qual a fraqueza dos argumentos era compensada pelo volume da voz do pregador. Ao estagiar numa igreja presbiteriana em Nova Iorque, sua vida foi para sempre influenciada pelo ministério de George Arthur Buttrick, "um poeta no púlpit : durante um ano ouvindo-o pregar dominicalmente, eu nunca vi um só clichê passar por seus lábios". Ah, que maravilha o dia em que a ortodoxia dá as mãos à poesia! Quer dizer, tipo assim, né?
por Gerson Borges
1 comentários:
Preguiça. Vã repetição. Reza gospel. Martin Luther King Jr me sacode de alento ao sugerir que "É melhor oração sem palavras do que palavras sem oração". Tudo o que eu precisava ler.
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Se você chegou aqui algum motivo tem, mesmo que seja por acidente. Em todo caso, só lhe peço respeito. Com o que me escreve, e com o que faz com o que eu escrevo. Obrigada ;D